Clique aqui para ver o vídeo de abertura

Estrangeiros da própria terra
Texto de Marina Mendes
O urutau é um animal enigmático e misterioso, aparece em lendas, contos, poesias e no imaginário, pelo meio rural e até nas grandes cidades, onde às vezes sua presença inusitada é divulgada pela imprensa. Mas é, antes de tudo, um desconhecido. Quando o pai de José Wilhame Pinto Araújo, vulgo José Urutau Guajajara, vulgo Zé, o deu o nome da ave-fantasma, escolheu porque o filho lembrava o animal. Mal sabia ele, que diferente do pássaro, Zé se tornaria uma referência, um nome conhecido, mas não no Maranhão, onde deu seus primeiros passos, mas no Rio de Janeiro.
Tudo começou quando, aos 14 anos, Zé aprendeu o português. Antes, só versava o tenetehara, língua da família tupi-guarani. Aos 20, decidiu vir pro Rio, mas a principio pensava em trabalhar para ajudar a família. Mais tarde, enquanto acontecia a ECO 92, entendeu que outras fronteiras deveriam ser atravessadas: Zé se viu no compromisso de não só estudar, mas também de preservar sua língua nativa. Formou-se então educador em 2006. Hoje, tem especialidade em educação indígena e segue o mestrado em linguística.
Mas foi no ano da formatura que surgiu a ocupação que mudaria a história de Zé. A aldeia Marakanã, situada atrás do antigo Museu do Índio, fez-se o novo lar não só dos Guajajara, mas também dos Potiguara, Apurinã, Kaingãng, Puri, Pataxós e outras 9 etnias indígenas. Mas como toda ocupação, nunca foi fácil. Zé diz que aquela terra é dos povos originários por direito, e sim, está no papel, desde 1910. O objetivo do lugar sempre foi ser uma área de preservação da cultura indígena brasileira. Por que então, Zé e seus companheiros, não poderiam habitar alí?!

Mesmo sendo Urutau, Zé nunca se escondeu ou se camuflou. Mas embora dê sua cara a tapa, se sente um estrangeiro em sua própria terra. “Índio, volta pra Amazônia. Lugar de vocês não é aqui, esse lugar é nosso”, dizem os torcedores que, por ventura, olharam para Aldeia ao sair de alguma partida no Maracanã. Mas Zé explica, “eles olham, não veem.”
Como mestrando de linguística, ele nos pergunta: - “A língua natural, indígena, é brasileira ou estrangeira?” Momentos de silêncio. Zé então explica que sua língua materna nunca foi aceita pelas universidades, que para ingressar no mestrado, teria que aprender o inglês, ou o espanhol, ou o francês, o que nunca foi muito de seu agrado. “Tenho resistência a essas línguas”, diz ele.
“Nem como estrangeira a língua indígena é reconhecida. Não é daqui, não é aceita também como uma língua lá de fora. É de onde então? Eu tive que aprender inglês para ingressar no mestrado, nem que fosse só o domínio da leitura. E é aí que você não vê o indígena na universidade. Nós somos estrangeiros na nossa própria terra, isso é real, é cruel. Quando eu escrevo ‘minha língua, minha pátria’ estou dizendo que vou me agarrar na minha língua que é assim que eu digo de onde eu sou. Mas mesmo assim o Estado e a cultura dominante nos dizem que não. Se apagar, exterminar a questão da língua, isso vai levar ao apagamento total do nosso povo, porque só ela explica os povos originários antes do europeu chegar aqui. A língua explica a diversidade étnica e linguística. Isso tudo é muito anterior a Colombo e Cabral. Isso nunca saiu daqui, isso é a nossa história”.
Potira Guajajara saiu do Maranhão com o mesmo objetivo de Zé: trabalhar. Mas para ela, a sensação de se sentir fora do contexto brasileiro começou desde a primeira vez que chegou à cidade. Ela se assustou com as favelas – “Como pode uma casa em cima da outra?” – e também com os túneis – “Eu tinha medo de passar dentro daquilo” – disse ela.
Por incrível que fosse seu espanto com as favelas, a Rocinha foi o primeiro lar de Potira, que ao chegar no Rio logo teve seu nome trocado para Graça. “Eles disseram que eu precisava de um nome para poder tirar documentos e começar a trabalhar”.

Mas de Potira para Graça, um abismo. Um abismo tão largo que, Graça não é índia. Graça é nordestina que teria vindo tentar a vida na cidade grande, como tantos outros. Potira é o nome da guerreira Guajajara. Ela nos conta que não se declarava indígena, porque tinha medo e não sabia o que esperar das pessoas. O que esperar dos ‘kari’ depois de tudo que Potira viu em sua infância/adolescência? Seus ancestrais, avós e pais sofreram com os mineradores e com os fazendeiros, e sim, ela viu tudo isso de bem perto.
De forma imprevisível, ela introduz: “Essa violência é de todo dia. Os índios estão morrendo pela terra, pela água, pelo ar e pelo fogo, por tudo o que acreditam. Hoje uma menina de 14 anos da minha tribo foi encontrada morta com o corpo queimado. A notícia chegou quase agora”.
Apesar de tudo, nem Zé nem Potira largaram sua identidade. Não aquela feita de papel, a identidade referida é a que está no sangue, na espiritualidade e na crença. Com seus marakás nas mãos e os corpos cobertos do suco do jenipapo misturado ao carvão, os Guajajara deixam sua marca por onde passam. Quem os vê sabe: são índios! Mas com muito orgulho em ser o que são e de ter vindo de onde vieram.