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Meu Título

Das raízes às flores
Texto de Carolina Carvalho
O som dos carros, ônibus, trens e metrôs configuram o cenário de um centro urbano. Lugar de correria, insegurança mas também de história no Rio de Janeiro. O Maracanã chama atenção e faz parte da memória de todo carioca, seja como parte do dia-a-dia ou como importante cenário na vida dos torcedores dos times de futebol do estado. Curioso que bem ao seu lado passe despercebido um dos eventos mais extraordinários da história brasileira: A Aldeia Marakanã.
Reparar na Aldeia é uma responsabilidade irreversível. Ao pular as pequenas barreiras de concreto empilhado que marcam os limites da ocupação, ultrapassamos também as barreiras educacionais que nos afastam dessa cultura, que logo no primeiro dia, aprendemos a chamar de nossa cultura. A verdade é que uma ida ao Marakanã é muito mais do que uma experiência antropológica, é um processo de autoconhecimento, de descobrimento da própria história e de forte conexão à ancestralidade de luta brasileira.
A ocupação tem mais de dez anos, formada por indígenas de mais de quinze etnias vindos de todos os cantos do Brasil. Entre desocupações e reocupações, é atualmente a ocupação de cunho político mais antiga do Rio de Janeiro. Já resistiu a três tentativas de desocupação, uma delas bem sucedida, realizada pela PMERJ a mando do Governo Cabral para a construção de um estacionamento nos preparativos da Copa do Mundo em 2014. Hoje ela resiste à falta de água, energia elétrica e ao concreto que esquenta e dificulta o plantio dos militantes que permanecem com afinco.

A Retirada (como é chamado o dia da desocupação) ocorreu no dia quinze de dezembro, de forma violenta e traumática para os ativistas que, bombardeados com gás lacrimogêneo e spray de pimenta, viram a derrubada dos prédios em que viviam há sete anos e a morte de suas plantações embaixo de uma grossa camada de cimento. Urutau Guajajara, ocupante da Aldeia desde 2006, conseguiu atrasar o processo de expulsão em dois dias, se recusando a sair do prédio do antigo Museu do Índio e depois subindo em uma árvore ao seu lado por 48 horas na tentativa de negociar com o governo. “Esse prédio” fala ele enquanto aponta pra o museu, hoje interditado pelas precárias condições estruturais “é o retrato de como a questão indígena tem sido tratada ao longo desses 517 anos de ocupação, de como a sociedade vê a questão indígena”
Ele e sua mulher, Potira Guajajara, ocupam a Aldeia Marakanã desde o seu primeiro dia, em outubro de 2006. Eles resistem movidos pelo objetivo de criar uma Universidade Indígena, um espaço dedicado a compartilhar e preservar a nossa cultura. “Sim, nossa cultura. A cultura não é minha, a cultura é de todos. Todo mundo tem uma gota de sangue indígena correndo nas veias, todo mundo tem a responsabilidade de preservar a história e lutar pelas causas dos indígenas porque elas são na verdade de todos nós. Quando você diz sua cultura, você está na verdade se privando de toda a culpa e responsabilidade que ela carrega” Diz Potira, numa fala que mesmo tímida transmite sua força de guerreira, termo usado pelos participantes do movimento ao chamar uns aos outros.
“Uma das nossas funções é indigienizar a população” conta rindo Urutau com o termo que inventou, termo que resume o processo de construção de uma nova ótica sobre a história do país. Parece estranha a ideia de que, feito uma catequização inversa, se sai da Aldeia mais indígena do que se entra, mas é que ser índio vai muito além de ser de uma etnia. Ser índio é entender que vivemos o 517º ano de uma invasão européia, é saber que no Brasil, existem cerca de 300 línguas e cada uma delas vai contar a história de um povo diferente, é compreender que temos uma relação íntima com a terra e a natureza e se privar dessa relação é tão prejudicial quanto perder a família, o que explica por exemplo, o crescimento desenfreado das doenças psicológicas nos centros urbanos.

Se indigienizar é também entrar pra luta, é criar consciência e responsabilidade social sobre a desigualdade e injustiça contra os povos originários. Aulas abertas e gratuitas de agroecologia, tupi-guarani, além de frequentes debates sobre pautas do movimento são promovidos na ocupação, eventos que tentam atrair a atenção dos moradores da região. “Há dez, quinze anos atrás, ninguém falava sobre a questão indígena no Rio de Janeiro, era como se a gente não existisse. Hoje, graças a Aldeia, a gente consegue alguma visibilidade, alguns universitários às vezes vem fazer projeto de TCC com a gente, vem conhecer, embora ainda seja muito pouco.” Diz Urutau, enfatizando a necessidade de aderência de luta pelos caraiw (ou não índios) para que o movimento ganhe força e possa um dia alcançar seus objetivos.
A ensurdecedora Radial-Oeste se contrasta com a calma da Aldeia, que conta com ocas de todos os tamanhos e tendas construídas em cima das poucas árvores que assim como algumas plantações, são cultivadas as custas da retirada do concreto escuro. Numa pequena cozinha coletiva, eles preparam o almoço e se organizam para deixar os afazeres em dia. Toda noite, em meio a escuridão amenizada apenas pelas luzes dos postes nas ruas, a fogueira é acessa e é realizado o ritual de canta e dança com o maraká. Na chuva, são estendidas lonas por cima das casinhas de bambu e a água é reaproveitada nas atividades cotidianas. Mas em dia de jogo no Maracanã, o espaço se transforma em alvo de ataques racistas dos torcedores “Índio, volta pra Amazônia, seu lugar não é aqui! – como se indígena só tivesse um pouquinho ainda, lá na Amazônia. Nunca um ser humano aqui do lado, próximo.” Conta Urutau.
Irônico porque na verdade as terras a beira do Rio Maracanã têm uma história indígena mais antiga que a do estádio mundial. O prédio onde funcionava o Museu do Índio foi construído pelo Duque de Saxe em 1862 e doado em 1910 ao Serviço de Proteção aos Índios, órgão estatal comandado pelo Marechal Rondon, quando de sua criação, em 1910. O objetivo é que o espaço fosse uma área de preservação da cultura indígena brasileira. Inicialmente, o prédio abrigou a sede do órgão federal, e posteriormente, entre 1953 e 1977, abrigou o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro. Após essa data, o museu foi transferido para Botafogo e o prédio ficou abandonado. Vindos pro Rio de Janeiro na década de 90, o casal Guajajara não encontrou na metrópole nenhum espaço indígena, ocupado por indígenas, discutindo políticas indígenas. Hoje, a Aldeia funciona como um ponto de encontro político e cultural para todos os povos originários no Rio de Janeiro.

Muitos indígenas deixaram a ocupação depois da Retirada em 2013, a partir da oferta do governo de residências no programa Minha Casa, Minha Vida na região próxima à prefeitura da cidade e também no bairro de Jacarépagua. “Se o primeiro Cabral ofereceu espelho e pente pros nossos ancestrais, o Cabral de hoje oferece programa social” diz Urutau, em tom crítico ao esvaziamento do movimento. “Você vê o quanto a resistência ta reduzida aqui agora, hoje tem gente que foi pra Brasília, tem outros que foram vender artesanato, na prática somos muitos poucos aqui. A única forma de sustento são as palestras nas escolas e a venda de artesanato, senão não dá pra sobreviver. É triste dizer isso, muito triste mas é a cruel realidade.”
A esperança vem de formas misteriosas e traz força àqueles que necessitam. Mutirões de plantio são organizados regularmente e com a ajuda da população próxima, o cimento vem sido retirado aos poucos e a plantação já possui uma variedade um tanto impressionante. Não é de se estranhar que a terra dê o seu melhor para ajudar os povos que de tantas tristezas, poderiam rega-la de lágrimas. As árvores crescem fortes como as pessoas ao seu redor, com toda beleza e teimosia de uma vida vinda da escassez do concreto, guiadas por seu propósito. Um dia a primavera há de chegar e apesar do medo iminente de outro desmatamento agressivo, os guerreiros se preparam para que assim como a natureza, as lutas estejam prontas para florescer.